O ataque criminoso e sangrento perpetrado a Israel pelo movimento armado islâmico Hamas, em 7 de outubro de 2023, reacendeu os alarmes sobre o papel que a República Islâmica poderia estar desempenhando no financiamento e na ajuda ao planejamento e execução de tais atividades terroristas em todo o mundo e, particularmente, na América Latina. Os especialistas acreditam que a onda de antissemitismo provocada pela guerra de Gaza poderia fortalecer a influência do Irã em países autocráticos, como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Bolívia, e até mesmo em outros países, representando sérias ameaças à democracia e à segurança da região.
Isso é o que afirma Joseph Humire, especialista em segurança global e contraterrorismo, diretor do Centro para uma Sociedade Livre e Segura, com sede em Washington, D.C. Humire insiste que é uma prioridade monitorar e tornar visível a crescente base que o Irã vem construindo na América Latina. Para isso, é urgente que as nações do continente trabalhem em conjunto.
Em novembro passado, o Brasil prendeu dois terroristas ligados ao grupo extremista libanês Hezbollah, que tem fortes laços com o Irã. “Embora devamos reconhecer o sucesso da Polícia Federal do Brasil nesse caso, a vulnerabilidade da região é motivo de preocupação. Um dos capturados já havia sido preso no Paraguai, mas o Brasil não o tinha em seu radar. Isso mostra a fragilidade na coordenação entre os países do continente, especialmente aqueles que fazem parte da Tríplice Fronteira”, condenou Humire.
Diante dessa situação preocupante, Humire falou com exclusividade à Diálogo sobre a presença, os planos e a gestão de Teerã na América Latina. A entrevista revela fatos surpreendentes, como o fato de que a Bolívia é o projeto mais bem-sucedido do Irã na região e que, além do terrorismo, o que o Irã busca é aproveitar-se de conflitos históricos antigos e não resolvidos, por meio de ações concretas de grupos radicais islâmicos, como Hamas e Hezbollah, para redesenhar fronteiras e desestabilizar as democracias latino-americanas, agindo como um perturbador silencioso e criador de cenários de conflito. A atual disputa sobre Essequibo é um exemplo disso. “Esse é o experimento; se der certo, outros o seguirão”, adverte Humire.
América Latina: teatro estratégico do Irã
Três forças se uniram na região: China, Rússia e Irã. Seu objetivo: impor uma nova ordem mundial. “Após o colapso da União Soviética, esses três países tinham uma rede na América Latina. O Irã veio imediatamente para pegar algumas dessas peças; a China veio mais tarde, mas fez o mesmo, assim como a Rússia, e em vez de competirem entre si, acabaram trabalhando juntos. Hoje, em termos de sincronização, não há nenhuma região no mundo onde esses três países tenham mais penetração do que na América Latina.”
E é nesse cenário que o Irã desempenha um papel de liderança. “O Irã não seria o que é hoje em dia sem o apoio da China, e a China dificilmente alcançará seu objetivo sem a ajuda do Irã. Quando a China tirar a máscara de panda vermelho que usa, veremos seus verdadeiros interesses. Enquanto isso, deixa que o Irã faça o trabalho sujo.”
Os principais atores desse teatro estratégico são Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua. “Estão em todo o continente. De Belize ao Brasil, não importa quão pequeno seja o país, há uma presença do Irã e do Hezbollah. Mesmo em países onde se poderia pensar que o Irã não é forte, ele é, como, por exemplo, no Uruguai, México e Panamá.”
Plataformas de mídia, centros culturais e uso duplo do comércio, estratégias de penetração
As relações do Irã com a América Latina remontam a 1979, com a eclosão da revolução, quando Cuba e Nicarágua estreitaram seus laços ideológicos com o Irã. Desde então, o Irã intensificou suas relações e, por meio de várias estratégias, penetrou na região.
“A ambição do Irã é ter influência e presença militar como tem no Oriente Médio”, diz Humire. “Obviamente, estamos falando de outra parte do mundo, onde levará tempo para chegar a esse nível, mas tudo indica que ele está indo nessa direção.”
Várias plataformas de comunicação e centros culturais têm sido parte das táticas do Irã, por meio das quais ele se encarregou de divulgar sua narrativa anti-imperialista e anticapitalista que lhe permite perpetrar a violência e criar instabilidade, comenta o especialista. “Estamos falando de centros culturais iranianos que foram abertos em várias cidades do continente, bem como de programas de embaixadas que frequentemente incluem serviços religiosos para divulgar os princípios da Revolução Islâmica. A isto se somam as estações e os canais de televisão operados em 16 países, por meio dos quais promove sua ideologia e seus objetivos de política externa; o Irã realmente criou uma rede de informações com a qual atrai seguidores e redes com ideias semelhantes.”
Além dessa estratégia de poder brando, há uma mais agressiva, que é a comercial. “Sob o pretexto de intercâmbios comerciais, o Irã tem infiltrado espiões, agentes subversivos e armas.”
O exemplo mais emblemático é o atentado contra a Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, o qual causou o falecimento de 85 pessoas e é considerado um dos ataques antissemitas mais mortais desde a Segunda Guerra Mundial. “No final da década de 1980, o Irã tinha um relacionamento privilegiado com a Argentina para a exportação de carne bovina. O Irã viu nisso uma oportunidade de infiltrar espiões que se passavam por adidos culturais, para garantir que a carne estivesse em conformidade com a certificação islâmica de dieta ‘halal’, mas, na realidade, eles vieram para apoiar o mecanismo financeiro e logístico que possibilitou o atentado perpetrado pelo Hezbollah.”
Essa foi uma estratégia enganosa que não apenas permaneceu em vigor ao longo do tempo, mas se intensificou a ponto de obter a cumplicidade dos governos e se tornar a maior ameaça de penetração na região. “Estou me referindo às relações comerciais de uso duplo que o Irã implementou na região (dual-use partnership). O mais evidente é o armamento iraniano que tem chegado à Venezuela por meio de remessas comerciais. As Forças Armadas da Venezuela são as primeiras a ter drones armados em seu inventário, cortesia do Irã, assim como a remessa de mísseis de curto alcance guiados com precisão, fabricados no Irã, provavelmente para armar os drones. Todos foram entregues sob a aparência de remessas de carga comercial. Esse tem sido o modus operandi do Irã, como fez com o Iêmen, e agora estamos vendo isso na região.”
Essa é uma estratégia que, com a cumplicidade de seus aliados, ajudou o Irã a penetrar profundamente na América Latina. “Não apenas permitiu que o Irã escapasse das sanções norte-americanas e internacionais, mas também confundiu as agências de inteligência latino-americanas que não estão familiarizadas com esses programas secretos de Teerã.”
Presença militar inquietante
O Irã tem sistematicamente forjado e consolidado importantes relações diplomáticas que lhe permitiram atingir o ápice de sua infiltração: as forças armadas. “Quero dizer que o Irã tem hoje uma presença militar legítima com alguns países da região e, quando digo legítima, é porque ambos os Estados estão de acordo”, explicou Humire.
Os países a que Humire se refere são principalmente a Venezuela e a Bolívia, duas nações onde o Irã intensificou suas relações diplomáticas para chegar a acordos de defesa relevantes. “A Venezuela é muito bem conhecida, sempre houve representação diplomática iraniana, muito antes de Hugo Chávez, por causa de seus acordos de petróleo, e isso não é novo; o que sim é novo é a força que essa relação adquiriu, que hoje se materializa na cooperação de defesa, desde o âmbito da logística até a capacitação.”
Isso se refletiu nas reuniões realizadas entre as duas nações. No final de 2022, durante uma visita de Nicolás Maduro a Teerã, ambos os regimes confirmaram que têm “grandes frentes de cooperação” no setor da defesa. “Acredito que entre nós crescerá uma amizade indestrutível para o futuro de nossos povos”, disse Maduro a seu homólogo iraniano, Ebrahim Raisi, durante essa visita.
“O caso da Bolívia é mais desconhecido, ainda não foi revelado tanto, mas também há acordos de defesa que estão indo na mesma direção”, alertou Humire.
Mas isso é apenas o começo. Embora a Venezuela e a Bolívia estejam entre os maiores aliados do Irã na região em termos de relações militares, eles não são os únicos interessados. “Daniel Ortega e o cubano Miguel Díaz-Canel também exploraram a cooperação militar com o Irã”, disse Humire, acrescentando que outros países deram a entender tais intenções.
Como exemplo, Humire destaca os dois navios de guerra iranianos que chegaram ao Brasil em fevereiro de 2023. “Situações como essa são um sinal de alerta e destacam o progresso que o Irã tem feito em sua cooperação militar na América Latina.”
Esses são avanços que também se refletiram no perfil dos membros do corpo diplomático designados às embaixadas da região. “Em quatro das onze embaixadas na América Latina, o Irã tem adidos de defesa na Venezuela, Bolívia, Brasil e Equador, e é provável que aumente.”
Bolívia: o plano mais bem-sucedido do Irã
Em 31 de outubro de 2023, o governo boliviano anunciou o rompimento das relações diplomáticas com Israel “em repúdio e condenação à agressiva e desproporcional ofensiva militar israelense que está sendo realizada na Faixa de Gaza”, disse o vice-ministro das Relações Exteriores do país, Freddy Mamani. O único país que rompeu relações em meio à atual escalada no Oriente Médio foi a Bolívia.
“A Bolívia é o projeto de política externa mais bem-sucedido do Irã na América Latina. Não há nenhum outro país na região onde o Irã tenha conseguido influenciar tanto em tão pouco tempo”, afirmou Humire.
A Bolívia começou a se tornar importante para o Irã com a chegada do Movimento ao Socialismo (MAS), um momento em que ambos os países fortalecem relações diplomáticas e a bola de neve começa a crescer. “Antes de 2007, o Irã não tinha presença diplomática na Bolívia. Em 2010, abriu uma embaixada, em 2012 já tinha acordos militares na área do narcotráfico e, três anos mais tarde, os bolivianos estavam viajando para o Irã, até chegar 2023, ano em que as duas nações assinaram um memorando de entendimento na área de defesa e segurança”, ressaltou Humire.
O ministro da Defesa do Irã, Mohammad Reza Qarai Ashtiani, declarou à imprensa iraniana que se trata de um pacto para “fornecer à Bolívia os equipamentos necessários na luta contra o narcotráfico e para preservar a segurança de sua fronteira”. O ministro também revelou que o acordo inclui cooperação acadêmica para as forças armadas bolivianas e que seria “um modelo a ser seguido por outros países da América Latina”, informou o diário espanhol El País.
“O que estamos vendo com tudo isso é o alto nível de penetração que o Irã alcançou na Bolívia por meio da influência que tem no MAS. A razão pela qual esse partido político conseguiu se manter no poder por quase duas décadas é porque o Irã o apoiou. O Irã ensinou a eles como administrar a oposição, armar milícias, militarizar as fronteiras, um apoio fundamental para o avanço de sua revolução.”
Esse relacionamento profundo é ainda mais alarmado pela possível existência de cooperação nuclear entre as duas nações. De acordo com Humire, a Bolívia é o único país entre os grupos autoritários da região que mantém um programa nuclear e cuja inspiração foi o Irã. Isso foi confirmado por Silverio Chávez, ex-diretor do Instituto Boliviano de Ciência e Energia Nuclear, que em uma entrevista à mídia alemã Deutsche Welle (DW), em 2016, disse: “O centro nuclear é um sucesso total. Fico feliz que os amigos do presidente Morales no Iraque e no Irã tenham lhe dado essa ideia.”
“Para a Bolívia, trata-se de energia nuclear, mas estamos falando de um país autocrático que não vai dizer que tem uma bomba atômica, mas a tem. Eu prestaria muita atenção a isso, porque a influência que o Irã alcançou na Bolívia poderia acabar com uma bomba nuclear na América Latina”, alertou Humire.
Parte II
O alcance do Irã na América Latina é surpreendente, mas, mais do que isso, é preocupante e inquietante, dadas as tensões geradas pelos ataques terroristas do Hamas contra Israel. A proximidade da América Latina com os Estados Unidos significa que a região está desempenhando um papel de liderança nos eventos que se desenrolam, tornando o Irã a pior ameaça às democracias do continente. Especialistas como Humire pedem atenção urgente quanto às intenções do Irã e sua presença atual na América Latina.
Na segunda parte desta entrevista, Humire se refere à reivindicação da Venezuela sobre Essequibo e como o Irã está apoiando essa reivindicação, bem como a outros conflitos que permanecem adormecidos, mas que o Irã procura despertar para desestabilizar a região, além da urgência de entender como o Irã age com seus representantes e por que o Hezbollah é tão importante para atingir seus objetivos. “A debilidade e o maior desafio da América Latina é seu desconhecimento […] sobre as ambições geopolíticas e geoestratégicas desses atores; é hora de entendermos bem o que é o Irã e o que é o Hezbollah e como eles operam juntos.”
Leia o próximo capítulo sobre Passos furtivos do Irã na região: América Latina sob ameaça – PARTE II