Mayerling Oropeza fez sua última corrida no domingo, 1º de março de 2020. A ciclista e desenvolvedora de páginas digitais, de 50 anos, foi atropelada em uma avenida no leste de Caracas, quando voltava para casa depois de participar do evento conhecido como BiciRock. O responsável fugiu e a abandonou.
Embora a Policlínica Metropolitana estivesse a uma quadra de distância do lugar onde ela ficou caída sobre o asfalto, os transeuntes que a auxiliaram optaram por levá-la ao hospital Domingo Luciani, um pouco mais longe, disse Ernesto Linzalata, um amigo da corredora.
O primeiro diagnóstico de Oropeza indicava que ela tinha traumatismos cranianos graves. Era então necessário realizar um exame de raio X para avaliar a gravidade das lesões.
“O tomógrafo do [hospital] Luciani não estava funcionando. Tampouco havia serviço de ambulâncias. Combinei então com alguns amigos e contratamos um serviço [de transporte] que a levasse a uma clínica”, declarou Linzalata.
Graças a esse apelo, foi possível reunir os US$ 150 que o serviço particular de ambulância cobrou, um valor que equivale a 50 salários mínimos na Venezuela.
“Quando já estávamos naquela clínica, houve um apagão de energia e tampouco foi possível fazer a tomografia. Íamos levá-la a outra clínica, mas seu estado era tão grave que decidimos voltar ao Luciani”, continuou Linzalata.
Oropeza morreu nesse hospital no dia 2 de março.
Esse caso mostra a fragilidade do sistema de assistência hospitalar na capital venezuelana e, por extensão, no restante do país. O hospital Domingo Luciani, segundo o Ministério da Saúde, é um dos centros “de referência” que existem no Distrito Capital. De acordo com o discurso oficial, isso significa que possuem os melhores equipamentos, têm mais insumos e equipe médica.
Linzalata não sabe se sua amiga teria sobrevivido caso tivesse recebido o atendimento necessário em tempo hábil. Mas está comprovado que os centros de saúde pública venezuelanos operam de forma muito precária.
Essa é uma das conclusões que oferece a Pesquisa Nacional de Hospitais, apresentada em janeiro pela organização venezuelana Médicos pela Saúde, uma equipe liderada pelo Dr. Julio Castro, um especialista em doenças infecciosas.
De acordo com essa pesquisa, a média semanal de horas em que houve falhas no serviço de energia elétrica nos hospitais do país foi de 235,8 em dezembro. Nesse mesmo mês, os serviços de raios X não funcionaram em 63,87 por cento das instalações hospitalares, e em 21,85 por cento delas funcionavam de forma “intermitente”.
Com essas cifras, as esperanças de realizar um diagnóstico de emergência no caso de Oropeza eram escassas.

No entanto, os serviços de raios X são vitais no contexto de um desafio que, segundo Castro, o país deverá enfrentar para atender os pacientes contagiados pela COVID-19, mais conhecida como coronavírus.
Emergência complexa
A presidente da Sociedade Venezuelana de Infectologia, María Graciela López, declarou que está se desenvolvendo uma “emergência humanitária complexa”. Essa situação é definida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura como uma crise que vem a ser o “resultado de uma combinação de instabilidade política, conflitos e violência, desigualdades sociais e pobreza subjacente”.
As emergências humanitárias complexas se originam nas ações ou omissões dos governos e se traduzem na impossibilidade do Estado de cumprir suas funções primordiais em áreas como a saúde, a alimentação e a segurança do cidadão.
“O coronavírus apresenta complicações com pneumonia, especialmente nas pessoas maiores de 65 anos, e são necessários serviços de raios X, bem como testes de laboratório, e ambos funcionam minimamente no país”, advertiu López.
Diante da chegada dessa enfermidade, considerada uma “pandemia” pela Organização Mundial da Saúde, Maduro ordenou a criação de uma Comissão Presidencial Permanente para Acompanhamento e Controle da COVID-19 e designou a vice-presidente executiva Delcy Rodríguez para liderá-la. O presidente da Federação Médica da Venezuela, Douglas León Natera, põe em dúvida a capacidade de Rodríguez de tomar decisões sobre questões de saúde pública.
“Ela dificilmente terá êxito. Talvez o ministro da Saúde [Carlos Alvarado] também não seja a pessoa adequada. Ele se declarou incompetente durante uma reunião realizada há dois anos”, ressaltou.
De acordo com León Natera, os pacientes graves infectados pelo coronavírus deverão ser levados para as unidades de terapia intensiva dos hospitais, onde precisarão ser entubados. No entanto, “esses equipamentos não funcionam na metade dos hospitais”, garantiu.
Sentinelas
No dia 9 de março, o Ministério da Saúde convocou os representantes das sociedades científicas do país ao Instituto Nacional de Higiene Rafael Rangel, localizado na Universidade Central da Venezuela. Ali o ministério informou sobre o protocolo elaborado para o atendimento dos pacientes infectados pelo coronavírus. Devido à crise hospitalar, o governo optou por concentrar os recursos disponíveis e os designados através da Organização Pan-Americana de Saúde em 39 instalações denominadas “sentinelas”.
Depois de revisar a referida lista, León Natera observou que o governo designou um hospital que estava fechado para atender os pacientes de Caracas, referindo-se ao centro assistencial de Coche.
Segundo López, outro aspecto que não está claro no protocolo determinado pelo governo se refere à “rota” que os possíveis contaminados seguirão ao entrarem nos hospitais “sentinelas”.
“Na denominada ‘rota respiratória’ que os pacientes seguirão não pode haver contato com outras pessoas, por exemplo, nas áreas de emergência. Além disso, deve haver uma quantidade adequada de materiais, tais como as máscaras N95”, ele explicou.
Outro fator é a designação dos serviços de transporte dos pacientes, especialmente quando é preciso percorrer longas distâncias para chegar aos centros sentinelas. De acordo com López, esse atraso aumentará a exposição de outras pessoas ao vírus.