O novo conceito de política externa da Rússia, publicado em 31 de março, delineia planos ambiciosos para desequilibrar a paz e a ordem no hemisfério ocidental, criando rivalidade entre os países latino-americanos e aumentando ainda mais a distância entre os Estados já alinhados sob as ambições do Kremlin.
“O documento é o resultado de sua invasão da Ucrânia”, disse à Diálogo Vladimir Rouvinski, diretor do Laboratório de Política e Relações Internacionais da Universidade Icesi da Colômbia, em 14 de junho. “A posição da Rússia é não jogar de acordo com as regras aprovadas e aceitas do jogo da coexistência internacional, mas refazer a ordem internacional como convém à Rússia, e é por isso que ela recorre a todos os tipos de justificativas.”
Pela primeira vez desde a Guerra Fria, que terminou em 1991 com a dissolução do fracassado projeto comunista da União Soviética, o Kremlin deixou formalmente claro que considera os Estados Unidos e seu conceito de ordem mundial como seu principal adversário, considerando-o um alvo para aplicar contramedidas, indicou em um relatório o think tank International Crisis Group.
No documento, Moscou se posiciona como um dos centros soberanos de desenvolvimento do mundo e define Pequim como um “parceiro estratégico integral”. Também ressalta que sua política externa é ditada por seus interesses nacionais e seus “valores tradicionais”. Isso reflete seu foco no conservadorismo social e chama de “degeneração ocidental as questões de identidade e papéis de gênero, religião e relações familiares”, afirma Crisis Group.
Sem retorno
O documento afirma que os Estados Unidos e seus aliados desencadearam “uma guerra híbrida contra a Rússia”, por meio de sanções econômicas e interferência em sua política interna. “Mas isso ignora os verdadeiros desafios militares e econômicos da Rússia, incluindo os danos financeiros, políticos e militares causados por sua decisão de invadir a Ucrânia”, acrescenta Crisis Group.
Moscou, portanto, adota tanto medidas simétricas quanto assimétricas para reprimir tais atos, tenta justificar o documento. “No entanto, é o Kremlin que realmente usa a guerra híbrida e a guerra assimétrica“, diz Rouvinski. “Isso tem a ver com algo muito particular: a guerra de Putin na Ucrânia acabou sendo o ponto de não retorno.”
“Putin sabe perfeitamente que a Rússia não pode retornar à arena internacional como um ator legítimo, depois de violar muitos acordos internacionais”, disse Rouvinski. “Moscou é quem está travando abertamente uma guerra assimétrica na Ucrânia e uma guerra híbrida no ocidente, que inclui a máquina de propaganda e desinformação russa.”
O Kremlin descarta a possibilidade de desacelerar sua ofensiva na Ucrânia. Os membros da elite política e empresarial da Rússia estão cansados da guerra e querem que ela termine, embora duvidem que Putin interrompa os combates, informa a plataforma argentina Infobae.
A nova política externa da Rússia indica que ela pretende criar uma barreira entre os Estados Unidos e seus aliados, por meio de uma rota regional na Europa e na Eurásia; expandir seu papel no que chama de “mundo islâmico”; fortalecer sua parceria com a China; e priorizar seu foco na África, na América Latina e no Caribe.
América Latina e Caribe
O documento promete apoiar os países latino-americanos a se distanciarem dos EUA e de seus aliados, inclusive por meio do estabelecimento e da expansão da cooperação nas áreas de segurança, cooperação militar e técnico-militar, algo que o Crisis Group descreveu como uma “ideia radical”.
A Rússia busca fortalecer uma parceria multifacetada com Cuba, Nicarágua e Venezuela, e desenvolver laços com outras nações latino-americanas. “Cuba, Nicarágua e Venezuela não são democracias, são autocracias de diferentes naturezas”, declarou Rouvinski. “A missão dessas três ditaduras é ser pontos de entrada para a Rússia na América Latina.”
“O Kremlin as reconhece como suas aliadas na tentativa de criar uma nova ordem mundial”, detalhou. “Essas nações compartilham a ilusão grotesca de que a atual ordem internacional é obsoleta. Elas são promotoras diretas da Rússia na região”.
Embora o documento mencione especificamente o Brasil, Rouvinski insiste que “isso não significa que o Brasil compartilha o que Moscou diz”.
A Colômbia também não fará parte dos esforços de Putin”, apontou Rouvinski, “não é a prioridade do governo colombiano, que tem reformas fundamentais em questões sociais e econômicas”.
No caso de Cuba, “vejo novas dinâmicas que são bastante preocupantes, já que a ilha tem uma posição importante para Moscou, devido à sua proximidade com os Estados Unidos”, explicou. “Como consequência da guerra na Ucrânia, as empresas russas que estavam em outros lugares estão procurando um lugar para investir; esse lugar pode ser Cuba.
Um ecossistema completo
Diante desse cenário, os países democráticos devem estar preparados para mais desinformação, atividades malignas secretas e mais esforços do Kremlin para aproveitar todas as oportunidades para avançar em suas ambições de combater o ocidente e criar um sistema internacional multipolar, observou Rouvinski.
“Os russos aprenderam a manipular informações e pessoas nos últimos 20 anos. Eles têm todo um ecossistema que inclui a mídia controlada pelo Estado, as embaixadas e a diáspora. Na América Latina, eles têm toda a plataforma e as ferramentas para sua nova doutrina de política externa”, reiterou Rouvinski.