Nos últimos anos, a expansão da China na América Latina e no Caribe tem sido um tema de discussão nos grandes círculos políticos e econômicos do mundo. E o motivo é claro: a China está buscando se tornar o principal parceiro comercial da região e líder, em relação ao resto do mundo, em financiamento, construção e operação de terminais marítimos na América Latina e no Caribe.
Um estudo realizado pela organização de investigação em segurança e defesa dos EUA, o Centro para uma Sociedade Livre e Segura (SFS), revelou que a República Popular da China (RPC) tem investimentos em cerca de 40 portos na América Latina e no Caribe, um número que se soma a outro ainda mais alto ao redor do mundo.
De acordo com o Índice de Conectividade do Transporte Marítimo (LSCI), em apenas duas décadas o país asiático aumentou sua conectividade marítima em mais de 60 por cento e hoje é o país melhor conectado globalmente. “A China tem hoje 95 portos e seis deles estão no ranking dos 10 maiores do mundo”, disse à Diálogo Agustín Barletti, escritor e jornalista argentino, especializado em portos, transporte marítimo e logística.
É uma rede marítima colossal, que os especialistas asseguram que foi tecida de forma sigilosa e estratégica para atingir objetivos que vão além dos econômicos e comerciais. “Esse é um exemplo do ditado chinês bu zhan er qu ren zhi bing, que significa subjugar seu inimigo sem lutar, usando todos os tipos de formas ocultas para obter vantagens, e é exatamente isso que vem acontecendo”, disse à Diálogo Leland Lazarus, diretor associado de investigação da Universidade Internacional da Flórida (FIU).
Embora esse colar de portos seja uma estratégia da RPC para aumentar sua riqueza e garantir o acesso constante e direto aos recursos naturais para a segurança nacional e o crescente setor industrial do país asiático – como o lítio, por exemplo, uma situação refletida em nosso relatório especial, China atrás do novo tesouro da América do Sul: Lítio –, também é extremamente valioso para a projeção do poder global da China: seu poder militar. “A segurança nacional e a segurança econômica estão entrelaçadas, são inseparáveis e estão absolutamente ligadas”, disse Lazarus.
De acordo com especialistas, por trás dessas infraestruturas civis há um selo de hegemonia militar e consideram que os portos comerciais chineses estão estrategicamente projetados para uso duplo. Para Joseph Humire, diretor executivo do SFS e especialista em segurança global e ameaças transnacionais, a estratégia dupla dos portos chineses é evidente pela localização geográfica dos mesmos. “A maioria dos portos está concentrada no Pacífico e eles querem usar ligações de transporte comercial para abrir canais pelos quais os militares possam passar; é uma linha reta estratégica que eles estão construindo.”
Para Barletti, essa é uma situação preocupante e alarmante. “O tempo mostrou que, em um futuro destacamento da marinha chinesa, todos os portos comerciais chineses poderão servir como bases militares.”
Alerta! O sopro fervente do Dragão chega à nuca
No início de junho deste ano, ficou claro o alcance das atividades do governo de Xi Jinping na América Latina e no Caribe, quando o governo dos EUA desclassificou informações de seus serviços de inteligência e confirmou ao mundo a existência de uma base de espionagem chinesa na ilha de Cuba. Essa situação deixou a descoberto um alcance maior do interesse do país asiático em fortalecer os laços com a região, além dos econômicos e comerciais. “Essas ações refletem os esforços da China para aumentar sua influência na América Latina e no Caribe”, disse à Diálogo Lazarus.
Essa é uma influência que se teme que penetre mais fortemente na região por meio da expansão portuária, que, segundo especialistas, traz consigo dependência econômica, perda de soberania e riscos à segurança nacional.

Especialistas afirmam que a infraestrutura portuária apoia as operações globais do Exército Popular de Libertação (EPL) da China. “Por meio das empresas que operam nos portos, as agências de inteligência chinesas poderiam rastrear qualquer movimento de embarcações comerciais ou navais que possam ajudar a China a entender onde restringir as rotas marítimas durante um possível conflito militar, ou até mesmo fechar o Canal do Panamá, se assim o desejarem”, disse à Diálogo R. Evan Ellis, professor investigador de Estudos Latino-Americanos da Escola de Guerra do Exército dos EUA.
Como a maior parte dos intercâmbios comerciais entre os oceanos Atlântico e Pacífico, o Canal do Panamá é altamente estratégico. As empresas chinesas investiram bilhões de dólares na área e já possuem dois portos em ambos os lados do canal: o Porto de Colón e o Porto de Balboa.
As preocupações de Ellis são as mesmas dos panamenhos, que, embora vejam oportunidades de desenvolvimento econômico com o país asiático, também temem as implicações da dependência por trás desses investimentos.
Esse temor é compartilhado por Eddie Tapieri, economista panamenho e especialista em relações entre a China e o Panamá. “Pensando de forma maquiavélica, a China poderia interferir no sistema de controle de portos. Toda a infraestrutura é chinesa, desde os guindastes, as empilhadeiras, os robôs que estão sendo usados, e isso, sem dúvida, aumenta o risco da ‘visão militar da China'”.
Além disso, há uma perda de soberania quanto ao controle de segurança e o aumento do risco de uma eventual estratégia militar. “Eles têm o direito de restringir qualquer entrada, então, o que estão fazendo dentro dos portos? Não se sabe. Se eles têm um escritório onde há hackers, eu não sei, é uma cláusula de segurança que eles estabeleceram e agora eles têm que cumpri-la por mais 25 anos”, afirmou Tapieri.
Ele está se referindo à renovação do contrato de concessão do porto de Balboa à empresa chinesa Hutchison Ports, que foi muito discutida e polêmica, porque se presume que houve corrupção. “Nesse porto, se faz o que quiser; em 25 anos, apenas US$ 3 milhões foram gerados para o país, com a justificativa de que o restante foi reinvestido, e agora eles estão entregando a eles novamente”, disse Tapieri.
Vale a pena ressaltar que o vice-presidente da COSCO Shipping, uma empresa estatal chinesa de navegação, é membro da Assembleia Consultiva do Canal do Panamá. Essa é uma representação curiosa que não deixa de levantar dúvidas e suspeitas. Embora fontes próximas ao Canal tenham assegurado à Diálogo que se trata de uma representação como parte da indústria e segundo usuário do Canal, está claro que, por meio desse assento, Pequim obtém informações privilegiadas e sensíveis que poderiam ser usadas em momentos críticos de um possível confronto econômico e militar.

O Caribe no centro das atenções
Outro porto estratégico a ser destacado na região com significativa influência chinesa é o porto de Freeport, nas Bahamas. “As Bahamas são muito valiosas em termos de segurança e a China entende como esse espaço é estratégico”, comentou Ellis.
Essa é uma preocupação que é escalada às grandes cúpulas militares dos EUA. O Tenente Brigadeiro do Ar Glen VanHerck, da Força Aérea dos EUA, comandante do Comando Norte dos EUA, destacou a agressividade da China na ilha e afirma que a China não só tem aqui sua maior embaixada do mundo, mas que os projetos de investimento chinês nas Bahamas “têm acesso […] a uma vigilância, por assim dizer, das nossas instalações de teste e treinamento da nossa Marinha”, destacou o jornal Business Insider.
Embora o Caribe muitas vezes fique em segundo plano nas discussões sobre a penetração da China na América Latina, por não ter as reservas minerais e outras matérias-primas que atraíram a atenção da China, a região é tão estratégica quanto a América do Sul. “Todo o jogo está no Caribe, o Pacífico é a porta de entrada, mas tudo acabará no Caribe”, disse à Diálogo Humire.
Aumenta o fogo na velocidade de um raio
Um dos portos onde a China está investindo mais pesadamente é o Terminal Portuário Multipropósito de Chancay, no Peru, um megaprojeto a aproximadamente 108 quilômetros de Lima, com um investimento de US$ 3,5 bilhões e administrado pela empresa estatal COSCO Shipping. Espera-se que esse porto, com 60 por cento de investimento chinês, esteja operacional em meados de 2024 e será o primeiro centro de logística da China na América do Sul. Para analistas como Tapieri, o porto de Chancay é um exemplo do que os chineses tentaram fazer no Panamá, mas não conseguiram, e agora estão chegando com todo o ímpeto.
Embora haja aqueles que acreditam que essa é uma grande oportunidade de desenvolvimento para a economia peruana, seus detratores alertam para os riscos que esse investimento traz. “Não estamos falando de uma empresa qualquer, mas da China Ocean Shipping Company (COSCO), que é propriedade do governo chinês, administrada pela Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais, sob o controle do Partido Comunista; portanto, é uma extensão do poder chinês”, disse à Diálogo Barletti.
Essa é uma situação que gerou muita desconfiança no país anfitrião. “Sentimos que eles nos traíram e venderam nossa pátria”, disse à Diálogo Miriam Arce, presidente da Associação em Defesa da Moradia e do Meio Ambiente do Porto de Chancay. “Esse não é um porto qualquer, estamos falando do primeiro porto 100 por cento privado do Peru, do qual perdemos toda a soberania ao entregar nossos mares aos chineses”, acrescentou. “Estamos cada vez mais conscientes disso, e vemos como a geopolítica está influenciando e até que ponto não é apenas um problema de guerra econômica, mas de poder bélico, o que é muito provável que aconteça aqui neste porto”, afirmou.

As preocupações não são pequenas. De acordo com China Index 2022, uma iniciativa de Doublethink Lab, uma organização da sociedade civil dedicada a estudar a influência maligna do autoritarismo digital, que busca classificar a penetração da China no mundo, o país da América Latina e do Caribe onde a China penetrou com mais força é o Peru, que também está em quinto lugar globalmente, atrás apenas do Paquistão, Camboja, Cingapura e Tailândia. “Fiquei muito surpreso com essa classificação. Eu esperava que a Venezuela ou o Equador encabeçassem essa lista na região, portanto, não devemos nos surpreender com o fato de que, no futuro, possamos ter uma base militar no Peru”, comentou Barletti.
Estratégia polar?
Em dezembro de 2022, a Shaanxi Chemical Industry Group da China, uma empresa estatal de energia e produtos químicos, assinou um memorando com o governador da província de Terra do Fogo, na Argentina, para a construção de um porto multipropósito possivelmente na cidade de Rio Grande. Chama a atenção o fato de uma empresa química ter sido escolhida para a construção desse tipo de infraestrutura e especula-se que por trás dela estaria a empresa HydroChina Corp. Shaanxi Group, outro gigante controlado pelo governo de Xi Jinping, de acordo com uma investigação do portal de notícias argentino Infobae. Mas o que mais fez soar o alarme foi o fato de que a Argentina estaria abrindo as portas da Antártica para a China, facilitando assim a estratégia de poder do país asiático.
De acordo com um estudo do Centro de Estudos Estratégicos (CSIS), a ambição da China levou o país asiático a tentar conquistar as fronteiras mais remotas do mundo para promover seus interesses estratégicos e militares. O centro se refere aos dois polos: o Antártico e o Ártico.
Na região do Ártico, a China já está presente por meio de parcerias com outros países para promover seus interesses. Conforme confirmado pelo CSIS, a China tem duas estações de investigação permanentes na região, uma no arquipélago de Svalbard, na Noruega, e outra na Islândia. Embora focados no conhecimento científico, os escritos estratégicos da China expõem os interesses do EPL na região. “A combinação de militares e civis é a principal maneira pela qual as grandes potências conseguem uma presença militar polar”, diz a edição de 2020 de Ciência da Estratégia Militar, um dos principais livros doutrinários militares do EPL sobre o estudo da guerra, publicado pela Universidade de Defesa Nacional da China.
De acordo com Humire, é nesses dois pontos geográficos que toda a estratégia de porto duplo da China entra em ação. “Quando tiver acesso aos dois polos, a China não precisará mais do Canal do Panamá. Eles terão alternativas que outros países não terão, e é aí que eles começarão a criar problemas.”

Estratégia dupla: comercial e militar
A concentração da propriedade chinesa no setor portuário está principalmente em apenas três conglomerados, a saber, COSCO, China Merchants Ports e Hutchinson Ports. “As duas primeiras são empresas estatais e a última é uma empresa privada, mas perdeu sua autonomia nos últimos anos, devido à lei de segurança da China”, comentou Lazarus.
Embora os portos comerciais não tenham sido projetados para ter capacidades de alto nível para funções militares, eles oferecem a Pequim uma janela de oportunidades para serem usados para fins militares, se assim o desejar. “De acordo com a lei chinesa, em uma eventual mobilização militar, todos os ativos civis devem ser disponibilizados para o EPL”, comentou Ellis. Lazarus acrescentou que, “no caso de um conflito global, é bastante viável que o governo chinês exerça pressão sobre essas empresas portuárias”, disse. “Como, por exemplo, pressioná-las a manter forças navais nesses portos ou forçá-las a dar ou restringir o acesso a essas rotas marítimas que são valiosas para os Estados Unidos ou seus aliados”, acrescentou.
Essa é uma situação que já começou a se tornar evidente em alguns países do mundo. De acordo com uma investigação da revista norte-americana de relações internacionais Foreign Affairs, alguns terminais portuários no exterior operados pelos chineses já servem a navios de guerra da Marinha do EPL, para reabastecer combustível, realizar manutenção ou repousar em terra firme. Alguns exemplos incluem o porto de Cingapura, o de Dar es Salaam, na Tanzânia, e Piraeus, na Grécia.
Mas isso não é tudo. Por meio desses portos, Pequim pode obter informações estratégicas para a tomada de decisões de segurança nacional. “As empresas chinesas estão obtendo um tesouro inestimável de informações e inteligência sobre commodities marítimas e informações dos EUA, bem como de qualquer outro país”, comentou Lazarus.
Essas informações são ainda mais valiosas quando se considera que alguns desses portos estão localizados próximos a bases militares das nações anfitriãs, como, por exemplo, Haifa, em Israel. “Isso permite que a China observe as rotas operacionais, o pessoal, os requisitos e os movimentos de outras forças armadas”, disse Ellis.
Na América Latina e no Caribe, vários dos principais portos da China na região estão próximos a essas bases navais. Esse é o caso do México, onde o porto de Veracruz fica perto da Força Naval do Golfo em Tuxpan, ou do Panamá, onde o porto de Balboa fica a apenas 6 km da Base Naval Noel Rodriguez.
Há também outros portos, como o de Paniagua, no Brasil, que fica próximo à Base de Apoio Logístico “criada para centralizar as operações de suprimento do Exército [Brasileiro], com sede no Rio de Janeiro, e que realiza a maioria das operações de descarga de material militar, em sua grande maioria proveniente dos EUA”, disse à Diálogo Barletti. Por fim, cabe destacar a construção do porto de Chancay, no Peru, que fica a apenas 73 km de distância da Base Naval de Callao.
Cuidado: quem governa os mares governa o mundo
Uma das maiores ameaças que os especialistas veem nos esforços de Pequim para expandir sua rede marítima são as dívidas que alguns países têm com a RPC, empréstimos que a China começou a cobrar com infraestrutura estratégica. “Esse é o negócio”, diz Barletti. “A China se aproveitou de situações vulneráveis e depois cobra suas dívidas com ativos dos países credores.”
O exemplo mais emblemático é o do Sri Lanka, que, incapaz de pagar sua dívida com a China, teve de arrendar seu porto para a China por 99 anos. “Se existe um modelo acabado da estratégia chinesa, é o do porto de Hambantota”, comentou Barletti. “A China convenceu o Sri Lanka a receber um empréstimo para a criação de um segundo porto que não tinha futuro e, quando ele fracassou, a China ficou com ele; agora, já estamos vendo navios de guerra visitando suas docas”, declarou Barletti.

São dívidas que estão se tornando ainda mais preocupantes, em vista da evidente desaceleração econômica do país asiático, recentemente relatada pelo jornal americano The New York Times. O que acontecerá com os países que não puderem pagar suas dívidas, quando a economia da China começar a vacilar?
Os desafios estão aumentando, especialmente quando se considera os riscos que a expansão marítima da China pode trazer. Embora os especialistas acreditem que a China esteja longe de firmar acordos formais de aliança militar ou de ter uma base militar como fez em Djibuti, não há espaço para complacência. “A militarização pode ocorrer a qualquer momento, porque a realidade é que a China não precisa de um acordo formal para ter uma base ou um destacamento militar”, comentou Ellis.
A capacidade da China de impor seus objetivos de segurança em ativos civis é o que a torna dominante e perigosa, afirmam especialistas como Lazarus, que compara a estratégia dos EUA com a da China, quando se trata de destacar suas forças militares. “Os Estados Unidos buscam a autorização do governo local para estabelecer qualquer locação de operação avançada, realizar treinamento militar ou sediar qualquer exercício militar em seu território. Com a China, há uma mistura deliberada do que eles chamam de fusão “civil-militar”. Nunca se sabe ao certo quando uma empresa chinesa está envolvida em um simples capitalismo ou atendendo aos interesses nacionais do Estado.
Mas há outra preocupação que inquieta ainda mais os especialistas em segurança global. “O maior risco não é a China em si mesma, mas a aliança que a China construiu com a Rússia e o Irã”, ressaltou Humire. Para o especialista, esses três países têm uma estratégia de penetração “político-militar” por meio da China. “Aos olhos da região, a China tem grande legitimidade política e credibilidade como aliada comercial, um papel que ela quer manter e que o Irã não tem. Mas, como a China não tem o poder econômico suficiente para dominar a região sozinha, ela recorre a outros países para se unir e aumentar sua força militar. No final, a China continua com o papel claro e legítimo que sempre teve, deixando o trabalho sujo para o Irã e, juntos, eles dominam a região. Essa é uma estratégia que já é evidente no Oriente Médio, na Ucrânia e na América Latina”, disse Humire.
Diante dessa perspectiva difícil e complexa para a América Latina, os especialistas recomendam que os líderes avaliem e estejam atentos às estratégias marítimas que estão sendo gradualmente reveladas, como no caso da China. Nunca antes foi tão valiosa e importante a profecia do famoso escritor e marinheiro inglês Sir Walter Raleigh: “aquele que controla os mares domina […] o mundo”.