Com suas vastas salinas, a América Latina é rica em um mineral que se tornou mais procurado do que o ouro: o lítio. Conhecido como ouro branco ou petróleo do século XXI, esse metal é agora essencial para a transição energética e o mercado em expansão de carros elétricos. O chamado Triângulo do Lítio, localizado no altiplano andino e composto pelos territórios da Bolívia, Argentina e Chile, abrange 52 por cento das reservas mundiais de lítio, uma situação que despertou o interesse dos principais agentes econômicos do mundo e estimulou uma corrida para adquirir esse metal na América do Sul. Ter acesso ao lítio agora é sinônimo de poder.
China vai com o pé no acelerador
Na corrida desenfreada pelo Triângulo do Lítio, a República Popular da China (RPC) está com o pé no acelerador e na liderança para cumprir uma de suas principais tarefas: dominar o setor de energia. No decorrer de 2023, o país asiático assinou acordos ambiciosos para investir nas salinas da região andina. Até o momento, a China é o único país que assinou acordos com as três nações do Triângulo do Lítio. “A América Latina deve se preocupar com a China, porque ela está vindo buscar seus recursos naturais”, alerta o jornalista e escritor argentino Agustín Barletti em sua mais recente investigação El hambre del dragón. El plan de China pra comerse el mundo (A fome do dragão. O plano da China para comer o mundo).
Um aviso que lembra o que o governo chinês tem dito repetidamente e que está explícito no Plano Nacional de Recursos Minerais da China de 2016: “A China depende dos recursos naturais para proteger a segurança econômica nacional, a segurança da defesa nacional e o desenvolvimento de indústrias emergentes estratégicas”. No entanto, a RPC não tem a capacidade de atender às necessidades de sua população em rápido crescimento, nem à expansão industrial desenfreada da China.
O método da China para garantir a segurança do fornecimento parece ser o controle físico do recurso. De acordo com Barletti, a China tem mais de 2.700 empresas na região, todas elas diretamente dependentes do Partido Comunista chinês. “É uma maneira de gerar o desembarque”, diz o escritor. Ele acrescenta que “a maioria dos investimentos está destinada a valores estratégicos para a China, sendo os recursos naturais seu principal objetivo”. E entre esses recursos naturais está, sem dúvida, o lítio, um metal estratégico para a China, pois ela se posiciona como líder mundial em baterias de lítio e na fabricação de carros elétricos, além de buscar a liderança na grande aposta em energia renovável.
De acordo com a empresa internacional de dados e análises S&P Global Market Intelligence, a China representou 79 por cento das baterias globais de íons de lítio em 2021. Embora a China já seja responsável por 13 por cento da produção mundial de lítio, esses volumes não são suficientes para abastecer seu colossal setor de baterias e sua tão desejada transição energética, por isso ela precisa buscar o abastecimento em outros mercados. “O que a China está buscando nessa corrida é um posicionamento estratégico de longo prazo para o benefício de sua própria economia, para o crescimento de seu país e para suprir a alta demanda por energia, porque o petróleo não é mais suficiente”, disse à Diálogo Eduardo Gamarra, professor de política e relações internacionais da Universidade da Flórida (FIU) e fundador da empresa de consultoria Integrated Communications and Research (ICR), especializada em opinião pública e investigação baseada em dados.
Assim passeia China pelo Triângulo do Lítio

Basta dar uma olhada no progresso da China nos países do Triângulo do Lítio para ilustrar essa realidade. Sua mais recente aquisição foi na Bolívia, a chamada “Arábia Saudita”. Embora seja o país com mais recursos de lítio do mundo – cerca de 21 milhões de toneladas –, ainda não tem nenhuma atividade comercial ou industrial. Em janeiro de 2023, o consórcio chinês CATL BRUNP & CMOC (CBC) assinou um contrato com o governo boliviano para a construção de duas usinas de carbonato de lítio para gerar extração direta de lítio (EDL) nas salinas de Uyuni e Coipasa. Segundo informou Franklin Molina, ministro de Hidrocarbonetos e Energia da Bolívia, esse é um investimento de US$ 1 bilhão e é a primeira participação de uma empresa estrangeira no setor de lítio da Bolívia.
Além disso, a mineradora chinesa Tibet Summit Resources Co Ltd. anunciou um novo investimento de US$ 2,2 bilhões em projetos de exploração de lítio em solo argentino, de acordo com o Ministério de Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto da Argentina. Espera-se que os projetos nas salinas de Arizaro e Diablillos, na província de Salta, produzam entre 50.000 e 100.000 toneladas de lítio. Além disso, outro projeto de capital chinês, operado pela empresa Ganfeng Lithium – a maior produtora de lítio da China e uma das principais participantes do mercado global de lítio – deve entrar em operação em breve na jazida de Cauchari-Olaroz. Além desses investimentos, há o recente anúncio sobre a participação chinesa para a fabricação e produção de baterias de lítio em Santiago del Estero, cujo projeto é composto pelo consórcio formado pelas empresas chinesas Contemporary Amperex Technology Company Co. Ltd (CATL), Tianqui Lithium e Gotion High Tech
Por último, no Chile, foi anunciado um investimento chinês para a criação de um parque industrial de lítio na cidade de Antofagasta. As empresas envolvidas serão Tsingshan Holding Group, Rupia Energy, Battero Tech e FoxESS. “Para começar, sabemos que nosso investimento será superior a US$ 2 bilhões”, disse John Li, vice-presidente do Tsingshan Holding Group, em entrevista ao jornal chileno El Financiero. Por sua vez, a empresa chinesa Tianqui Lithium adquiriu em 2018 24 por cento da Sociedad Química y Minera de Chile (SQM), para exportar 80.000 toneladas de lítio durante sete anos para a empresa chinesa BYD. Conforme anunciado por El Financiero, a oferta foi de US$ 6 bilhões e as vendas da empresa aumentaram em 144 por cento, graças ao crescimento do mercado de veículos elétricos liderado pela China, destacando o país asiático como o principal comprador do lítio chileno.
Avanço da China não é casual
Várias empresas internacionais tentaram entrar no Triângulo do Lítio, mas na América Latina a China assumiu a liderança. “Ela conseguiu, como sempre fez, com um golpe de um talão de cheques e usando a munição de seu capitalismo de Estado”, comentou Juan Pablo Cardenal, escritor e antigo correspondente da Espanha na China (2003-2014) e atual membro do Centro para a Abertura e o Desenvolvimento da América Latina (CADAL), em uma entrevista à Diálogo. Uma estratégia que, de acordo com especialistas, foi impulsionada por uma forte injeção de capital chinês por meio de empréstimos e investimentos estatais, acompanhada por uma política externa incisiva de poder brando. Como isso funciona?
Em primeiro lugar, os grandes empréstimos chineses que fluíram para a região no início do século XXI, subscritos de governo a governo, comprometeram os países receptores a contratar empresas chinesas para desenvolver infraestrutura estratégica, como a energia. De acordo com um estudo do think tank americano Inter-American Dialogue, o setor que mais recebeu empréstimos foi o de energia, com US$ 94,6 bilhões. Como resultado, o “Dragão” deixa rapidamente de ser um ator secundário para se tornar um ator principal na maioria dos países da região, atraindo investimentos por meio de empresas estatais.

“Nenhum outro país é capaz de competir com a proposta do capitalismo chinês”, disse Cardenal. “Não estamos falando de uma proposta de empresas, mas de uma proposta do Estado chinês, e essas empresas que vêm para competir com as empresas americanas, europeias ou japonesas são empresas que vêm com um selo oficial e com financiamento oficial; elas não estão apenas buscando uma questão de custo-benefício, mas estão atendendo às necessidades estratégicas do seu país e, nesse sentido, a China não tem concorrente”, disse.
A estratégia também é impulsionada pelo “oportunismo”. “A China se aproveitou das circunstâncias da região, conseguiu penetrar em economias precárias que não tinham acesso ao crédito convencional, prometendo investimentos e empréstimos, como a Bolívia, que já deve US$ 6 bilhões à China, mas isto será cobrado”, disse Gamarra, da FIU.
A essa tática, questionada por economistas e especialistas da área, a China acrescentou uma política externa de poder brando e incisivo, que serviu para expandir sua presença diplomática, cultural, científica e militar e penetrar nas economias do sul global com maior intensidade. “Trata-se de uma estratégia de aproximação personalizada com indivíduos influentes da sociedade latino-americana – de políticos, funcionários públicos e jornalistas a acadêmicos, empresários e antigos diplomatas, entre outros – com o objetivo de expô-los ao discurso oficial do regime chinês e aproximá-los da causa de Pequim”, disse Cardenal, autor de A arte de fazer amigos: Como o Partido Comunista chinês seduz os partidos políticos da América Latina.
Os analistas enfatizam que a China não pensa em termos de ciclos eleitorais, mas planeja com metas estratégicas de 25 a 50 anos ou mais. “Essa visão tem sido fundamental para a posição privilegiada que a China tem hoje na região, especialmente agora no Triângulo do Lítio”, comentou Gamarra. “No caso da Bolívia, por exemplo, existe um relacionamento muito próximo com o presidente Arce, mas também houve e continua havendo um relacionamento próximo com Evo Morales. Eles têm atuado em ambos os lados do espectro político, com o objetivo de obter acesso ao lítio. E conseguiram”, acrescentou.
A capacidade chinesa de estabelecer relações com todos, mas sem se intrometer de forma tão direta ou pública que a impeça de continuar movendo-se de governo a governo, ou mesmo de capital a região. “O caso mais dramático é o da Argentina, onde a China implementou uma estratégia não mais com o Estado, mas por meio de relações diretas com os governadores. Para os chineses, já não conta nem mesmo manter relações comerciais de Estado para Estado, e já existem setores na Argentina que estão muito preocupados com isso”, comentou Gamarra.
Essa opinião é compartilhada por Bruno Fornillo, investigador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina, que destacou que as lacunas estruturais da economia argentina permitiram um influxo excessivo de empresas chinesas, das quais o país asiático conseguiu tirar proveito. “O número de projetos que existem na Argentina se deve ao fato de a matriz neoliberal permitir uma entrada totalmente descontrolada de empresas estrangeiras, que não aconteceria na China, nem mesmo por acaso”, comentou Fornillo.
O poder incisivo da China também é acompanhado por uma forte retórica, por meio da qual ela consegue grandes feitos. Um exemplo disso são seus discursos persuasivos que prometem gerar empregos, mas são empregos para seus próprios cidadãos e para seu próprio benefício, comentam os especialistas. “Os chineses chegam e anunciam que, por meio de seus investimentos na região, vão gerar um grande número de empregos, mas é mão de obra chinesa. Na Bolívia, por exemplo, mais de 20.000 cidadãos chineses já chegaram para trabalhar em seus projetos de investimentos no país”, explicou o especialista Gamarra.
Mas a análise de Gamarra vai além, afirmando que a China não está apenas buscando criar empregos, mas também posicionar e monopolizar a indústria em setores estratégicos como o lítio. “O lítio é o exemplo mais evidente de poder incisivo. O que a China está tentando fazer é criar um monopólio sobre as diferentes fases do lítio”, comentou.
Corrupção, uma ameaça latente

Mas há mais. De acordo com analistas e especialistas, há outro fenômeno que deu à China uma vantagem competitiva na região e, em particular, na corrida do lítio. Os especialistas o chamam de “corrupção geoestratégica”.
“Ela se caracteriza pelo uso de métodos corruptos, como contratos sem licitação, acordos financeiros com informações privilegiadas, ou relações especiais com os detentores do poder, para promover os interesses estratégicos da China”, disse Gamarra, autor de O que é “corrupção geoestratégica” e como a China a utiliza para exercer sua influência na América Latina.
“A China tira proveito das estruturas de corrupção que prevalecem na região para promover seus interesses sem as penalidades enfrentadas pelos países ocidentais”, acrescentou o especialista. “Isto é, a corrupção é uma espécie de mal necessário para eles; corromper um funcionário não é uma questão moral, é uma questão de estratégia e necessária para promover seus interesses”, disse.
Uma opinião compartilhada por Douglas Farah, presidente da IBI Consultants, uma empresa de consultoria de segurança nacional que se concentra no crime organizado, que, em uma entrevista ao Nuevo Herald, falou sobre como a China tem usado a corrupção geoestratégica para ganhar uma posição na região à medida que outros países diminuem sua influência. “Os chineses estão usando o suborno e outras práticas obscuras para expulsar as empresas americanas e europeias do setor de produção de lítio na América Latina”, comentou.
Operações irregulares na Argentina e na Bolívia?
Essa é uma situação que já parece estar evidente na Bolívia e na Argentina. De acordo com especialistas, um exemplo disso é o que está acontecendo atualmente na Bolívia, depois que se soube que o governo de Luis Arce assinou um contrato multimilionário para a exploração e extração de lítio na Bolívia, quando os alemães estavam prestes a ganhar o contrato. “Era um acordo mais ou menos bom para a Bolívia, mas não prosperou e agora a Bolívia vem com a surpresa que está fechando com a China”, disse Gamarra.
Essa decisão causou um alvoroço no país socialista do MAS. A mídia boliviana fez alusão à falta de precisão do projeto e enfatizou que não se sabe como o consórcio chinês CATL BRUNP & CMOC (CBC) recuperará seu investimento e obterá lucro. Em teoria, o acordo estabelece um “controle absoluto” por parte do Estado, mas até o momento não se conhecem os termos específicos do acordo, os prazos, o valor dos investimentos e o papel que o consórcio chinês desempenhará, caso não tenha nenhuma participação no negócio. “Isso é muito sério, porque não há informações sobre as condições ou como farão para não violar a lei”, afirmou ao jornal Los Tiempos Gonzalo Mondaca, pesquisador ambiental do Centro de Documentación e Información Bolivia (Cedib).
Juan Carlos Zuleta, especialista boliviano na economia do lítio e assessor do Comitê Cívico Potosinista (Comcipo), disse que o acordo viola o artigo único da Lei 928, que estabelece que 100 por cento da produção e comercialização do lítio devem estar nas mãos de Yacimientos de Litio Boliviano (YLB). Zuleta questionou a escassa transparência do contrato e a falta de experiência comprovada da CBC na aplicação da tecnologia EDL.

“Nos contratos com empresas chinesas não há transparência sobre os acordos assinados; muitas vezes a China, incluindo seus empréstimos, exige confidencialidade; então, quando um acordo vem à tona, vemos por que muitas vezes são acordos completamente assimétricos em favor da China, às vezes com cláusulas injustas ou com garantias soberanas por parte do Estado receptor”, comentou o especialista Cardenal.
É importante ressaltar que já houve escândalos de corrupção envolvendo empresas chinesas na Bolívia. “A relação de corrupção com a China vem de longa data e continua”, diz Gamarra, internacionalista da FIU. No final de 2022, o jornal La Nación denunciou um escândalo de suborno envolvendo uma empresa chinesa que subornava funcionários do Estado boliviano. De acordo com esse jornal, a denúncia é sobre um suborno milionário de uma empresa chinesa a funcionários de uma empresa estatal encarregada do controle de estradas nesse país. Em resposta à denúncia, que estipula que se tratou de um suborno de cerca de US$ 2,6 milhões, vários funcionários da empresa estatal ABC e um executivo da empresa chinesa Harbour Engineering Company foram presos, informou o jornal.
O caso da Argentina é outro dos mais controversos, de acordo com um relatório recente elaborado pela International Coalition Against Illicit Economies (ICAIE), que se concentrou em um dos negócios mais valorizados para Xi Jinping: o lítio. Esse estudo examina como o governo da Argentina permitiu que a RPC assumisse o controle de vários interesses estratégicos, incluindo o comércio vital de lítio, por meio de práticas corruptas e enganosas, com a cumplicidade dos governos nacional e provincial da Argentina, que não apenas protegem as empresas da RPC da concorrência justa, mas também da responsabilidade, da supervisão ambiental e da participação da comunidade, anunciou o relatório.
De acordo com o estudo, o caso mais evidente é o de Santiago del Estero. “Os chineses nem sabiam onde ficava Santiago del Estero e já há milhões de dólares chineses que já entraram naquela região, e agora estão interessados em construir uma fábrica de baterias em um lugar onde nem sequer há lítio”, acrescentou Gamarra, que conhece bem o caso na Argentina.
A maior vantagem da China, afirmam os especialistas, é que essa corrupção é permissiva e está ligada ao seu modelo “autocrático”, em que as empresas não são julgadas pelo governo porque pertencem a ele. “Encontramos artigos chineses em que comparam como ganhar negócios pagando propina, versus como ganhar negócios sem pagar propina, e concluem que é melhor pagar propina porque isso lhes dá uma vantagem competitiva”, ressaltou Gamarra.
Essa é uma situação preocupante que Cardenal também destaca. “No final, tudo se resume no fato de que no sistema chinês não há contrapesos, pois o custo pago pelas empresas chinesas e pelas instituições financeiras chinesas por seu mau comportamento, suas más práticas no exterior, têm um custo social ilegal de zero na China.”
As vantagens da China são desvantagens para o Triângulo do Lítio

A liderança da China na corrida do lítio preocupa os círculos políticos e econômicos. Especialistas de todo o mundo consideram essa competição desigual, pois enquanto países como os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão sancionam empresas que se envolvem em práticas corruptas para obter contratos, a China não o faz, e suas empresas se aproveitam das fraquezas institucionais e da corrupção arraigada que existem na região. Mas, há mais: de acordo com especialistas, a China não tem escrúpulos nem questionamentos com relação a qualquer impacto ambiental que possa resultar da exploração ou do aproveitamento como o lítio.
Na segunda parte deste relatório, analisaremos como os investimentos da China na extração de lítio se tornaram uma dor de cabeça para países como a Argentina e por que a América Latina corre o risco de repetir a história do extrativismo desenfreado, desperdiçando assim uma oportunidade de ouro branco para o desenvolvimento da região.
Leia o próximo capítulo sobre a busca da China pelo novo tesouro da América do Sul: o lítio PARTE II.