O Parlamento da Nicarágua aprovou, no dia 2 de junho, o projeto de lei que cria a Cruz Branca, vinculada ao Ministério da Saúde, depois de fechar a Cruz Vermelha Nicaraguense (CRN), por considerar que violou seus “princípios de imparcialidade e neutralidade”, durante os protestos sociais de 2018, ameaçando “a paz e a estabilidade do país”, informou a Assembleia Nacional da Nicarágua em um comunicado.
Acrescentou que a nova entidade atenderá às emergências das famílias e comunidades nicaraguenses em situações de risco e vulnerabilidade.
“O cancelamento da personalidade jurídica da CRN tem a intenção de gerar dependência absoluta dos cidadãos em relação ao regime”, disse à Diálogo Eliseo Núñez, analista político nicaraguense e ex-deputado da oposição, no exílio, em 18 de junho. “Eles querem que as pessoas dependam da ditadura para qualquer tipo de ajuda, seja com relação à saúde, a créditos concessionários ou assessoria.”
Desastre e chantagem
Ao abolir a entidade humanitária, que trabalhava de forma independente na Nicarágua desde 1934, a Federação Internacional da Cruz Vermelha (IFRC) expressou sua preocupação com o fechamento e o impacto futuro sobre as ajudas humanitárias emergentes no país, disse a IFRC em um comunicado.
A população costumava ligar para a Cruz Vermelha para qualquer emergência médica e a tinha disponível quando ocorria um desastre natural; agora terá que ligar para o regime, que prestará serviços a seu bel-prazer, criando dependência absoluta, comentou Núñez. “Não podemos esquecer que isso faz parte do controle social. A população não terá escolha a não ser pedir ajuda à ditadura, e a ditadura a chantageará.”
Agora, no caso de eventuais desastres naturais de grande magnitude, a sociedade nicaraguense fica totalmente exposta. “A comunidade internacional não poderá fornecer fundos se não for por meio da oligarquia, para que ela possa administrá-los com o viés político com o qual administra tudo”, afirmou Núñez.
Além disso, os parlamentares nicaraguenses pró-governo ordenaram que todo o patrimônio, bens e ações pertencentes à Cruz Vermelha se tornassem propriedade do regime e fossem administrados pela nova organização, informou a plataforma argentina Infobae, em 12 de maio.
A Nicarágua, devido à sua posição geográfica, está exposta a vários fenômenos naturais, como furacões, tempestades tropicais, tornados, chuvas fortes, secas, terremotos, erupções vulcânicas, maremotos, deslizamentos de terra e falhas geológicas, informa na internet a Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua.
Arrasando a sociedade civil
Em 7 de março, o regime sandinista também liquidou a organização sem fins lucrativos Cáritas, o braço social da Igreja Católica, sob a figura da “dissolução voluntária”, informou a plataforma nicaraguense Confidencial.
Daniel Ortega chamou a Igreja Católica de máfia. Ele a acusou de ser antidemocrática e suspendeu as relações diplomáticas com o Vaticano, depois que o Papa Francisco descreveu o sistema repressivo de Ortega e sua esposa Rosario Murillo como uma “ditadura comunista e hitleriana”, informou a plataforma peruana Expediente Público.
Martha Patricia Molina, advogada e defensora dos direitos humanos, disse ao jornal nicaraguense La Prensa que 32 freiras e 39 sacerdotes foram expulsos para o exílio nos últimos sete anos. A igreja registrou pelo menos 529 ataques desde 2018; 90 deles ocorreram até agora, no decorrer deste ano.
Um dos casos mais emblemáticos é o do bispo da Diocese de Matagalpa, monsenhor Rolando Álvarez, que está na prisão. Ele foi condenado a mais de 26 anos de prisão por “traição à pátria, disseminação de notícias falsas e por minar a integridade nacional”, informou La Prensa.
“Ele [Ortega] está buscando a alternativa de fundar uma religião. Parece loucura, mas é isso que ele está buscando”, disse Núñez. “Ele se vê como a divindade dessa religião e que, quando morrer, Rosario provavelmente atuará como seu vigário na Terra para comunicar-se com ele.”
Desde abril de 2018, o regime de Ortega-Murillo fechou universidades, associações profissionais, artistas, mulheres, agricultores e pecuaristas, missões religiosas, ONGs locais e estrangeiras e até mesmo declarou fora da lei a Academia Nicaraguense da Língua, informa a plataforma alemã DW.
Também cassou em massa os títulos de advogados e tabeliães públicos por terem acompanhado os presos políticos e suas famílias em sua demanda por justiça nos últimos cinco anos. Da mesma forma, 222 presos políticos foram expulsos da Nicarágua e destituídos de sua nacionalidade e seus bens.
Usando estratégias diferentes, o regime Ortega-Murillo eliminou mais de 3.500 associações sem fins lucrativos, de acordo com DW.
O regime Ortega-Murillo “arrasa a sociedade civil. O fechamento da Cruz Vermelha é o coroamento, praticamente a peça de encerramento”, disse Núñez. “Isso não é mais um paradoxo, é uma insolência, absolutamente cínica.”
Retórica anticapitalista
Nesse contexto, o regime Ortega-Murillo aumenta sua retórica agressiva contra os Estados Unidos por sua liberdade de expressão e comércio. “Esse anticapitalismo, baseado em seu ressentimento contra os Estados Unidos porque eles são ricos […], não é culpa dos EUA”, disse Núñez. “Ortega está ficando estagnado na esquerda mais retrógrada da América Latina para projetar-se no eixo antiocidental proposto pela Rússia.”
A retórica antidemocrática, à medida que a globalização avança, tem cada vez menos impacto. “Os Ortega-Murillo não se conectam com as novas gerações”, ressaltou Núñez. “Realmente não sofrem as consequências de um isolamento total, porque ainda têm um banco privado que chantageiam constantemente para fazer o que eles querem.”
Os grupos pró-democracia devem ter “uma única narrativa”, uma única estratégia em um eixo de ações em que coordenem suas capacidades. Isso pode fazer com que a esperança cresça na Nicarágua, disse Núñez. “A decisão da comunidade internacional não deve afetar o povo nicaraguense, mas chegará o momento em que a decisão será como a que é tomada quando alguém tem um tumor cancerígeno.” Ele deverá ser removido pela raiz.