De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), uma agência de proteção aos refugiados, mais de 4,5 milhões de venezuelanos abandonaram seu país para fugir das difíceis condições econômicas, sociais e políticas, em um período de sete anos.
O êxodo pode ser dividido em duas fases. A primeira fase começou quando Hugo Chávez assumiu o poder e terminou alguns meses após sua morte. Essa fase incluiu muitos executivos, líderes políticos oposicionistas e ex-funcionários estatais. Sua demografia era bastante restrita. Segundo o sociólogo venezuelano Tomás Páez, mais de 90 por cento desses refugiados tinham algum tipo de qualificação profissional.
A segunda fase começou em 2014, sob o regime de Nicolás Maduro. O número de refugiados era muito maior e sua demografia muito mais diversificada.
A acadêmica venezuelana Rina Mazuera-Arias, professora e pesquisadora de Direito Civil, e sua equipe mostraram que apenas aproximadamente metade dos refugiados recentes (em 2019) era profissionalmente qualificada – ainda um alto percentual, se compararmos a outros níveis de migração global –, mas menor que o da primeira fase.
A participação efetiva de Chávez e Maduro se fez presente em ambas as fases. No início dos anos 2000, um grande número de ex-funcionários estatais, principalmente da petrolífera estatal PDVSA, deixou a Venezuela depois de ter participado de greves contra o governo. A administração de Chávez demitiu cerca de 18.000 funcionários da PDVSA, colocando-os em uma lista negra de cargos governamentais e negando-lhes acesso aos serviços de assistência pública, perseguindo e prendendo líderes sindicais. Muitos desses engenheiros, cientistas e administradores saíram da Venezuela e foram empregados pelas indústrias de petróleo de outros países.
Esse modus operandi se intensificou durante o regime de Maduro, especialmente a perseguição aos líderes e ativistas políticos oposicionistas, cujas opções são fugir do país, buscar refúgio em uma embaixada ou se tornar prisioneiros políticos – frequentemente na abominável prisão de Helicoide. O número crescente de ativistas de diferentes partidos políticos que moram no exterior e suas histórias de perseguição, constantes ameaças e intimidações, além de terem que sair de maneira clandestina do país, são exemplos que confirmam a participação ativa do regime.
A perseguição de Maduro não se concentrou apenas nos ativistas políticos, mas incluiu também suas famílias. Com frequência, quando não consegue subjugar um líder da oposição, seja devido à sua importância ou porque ele já saiu do país, o regime se volta contra seus parentes – como ocorreu recentemente com a perseguição ao tio do presidente interino venezuelano Juan Guaidó.
Campanha de intimidação
Essa perseguição não tinha como alvo apenas cidadãos venezuelanos. Em 2015, o regime de Maduro expulsou mais de 2.000 colombianos que viviam na Venezuela, durante uma campanha de intimidação através de uma ação da Operação para Libertação do Povo (OLP) – uma iniciativa anticrime do governo –, que incluiu vistorias de policiais em residências particulares em busca de colombianos, marcando as frentes das casas com as letras R ou D pintadas, que significavam “registradas” ou “demolir”. Começou, então, a emigração de 22.000 colombianos adicionais, que temiam a repressão por parte das forças do regime.
Entre os venezuelanos perseguidos, havia também ex-magistrados, jornalistas, ativistas de organizações não governamentais e muitos cidadãos que levantaram a sua voz contra o regime e, posteriormente, fugiram após sofrerem ameaças e assédio do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (SEBIN) e serem acusados de “traição à pátria” – o que significaria que eles seriam julgados por tribunais militares.
O regime venezuelano não guarda estatísticas públicas de emigração, o que é um indício de que deseja ocultar o assunto, não lhe dar muita importância ou ignorá-lo. Assim sendo, os dados devem ser obtidos de outras fontes.
Uma ameaça menor contra o regime
Ao mesmo tempo, o regime tem desempenhado um papel mais passivo no êxodo, o que, em parte, beneficia sua própria sobrevivência. O primeiro benefício que o governo teve começou com a primeira onda migratória e continua até hoje. Os sociólogos venezuelanos Iván de la Vega e Claudia Vargas mostraram que, como era de se esperar, os que migram são geralmente apoiadores da oposição – uma tendência que vem aumentando ao longo dos anos. Assim sendo, a saída massiva de pessoas do país diminuiu o número de vozes críticas dentro do país, reduziu a participação nas manifestações contra o governo e até mesmo tornou mais difícil a participação dos detratores nas eleições – tornando menor a ameaça interna ao regime.
O segundo benefício está vinculado às suas despesas. A crise que originou a migração tem sido principalmente um produto do fracasso das políticas sociais e econômicas do próprio governo. Como tem sido amplamente divulgado, a crise econômica exerceu uma forte pressão sobre os serviços públicos. Escolas, hospitais, universidades, serviços de água e energia etc. sofreram grandes cortes em seus orçamentos.
O êxodo ajudou o regime ao reduzir o número de crianças e jovens que precisam ser educados e o número de pacientes que precisam ser tratados. Isso significa que há menos bocas para alimentar, menos necessidade de remédios, menos funcionários públicos para pagar e, em geral, aliviou a pressão sobre as despesas públicas. Só no setor da educação, segundo dados do próprio governo, entre 2013 e 2017, mais de 683.000 alunos deixaram de frequentar as escolas. O Instituto Nacional de Estatística da Venezuela indica que, entre 2015 e 2018, mais de 1.270 escolas foram fechadas.
O regime também tem se beneficiado com o dinheiro que os refugiados enviam à Venezuela, o que ajuda a estimular sua combalida economia. As remessas criaram empregos, permitiram que algumas famílias mantenham um padrão decente de vida e trouxeram para a economia a tão necessária moeda estrangeira, o que mitiga, em grande parte, a hiperinflação vivida no país. É difícil saber o valor real das remessas, mas estima-se que elas tenham alcançado mais de US$ 3 bilhões por ano no seu pico.
O país, no entanto, também sofre com o êxodo de cérebros. Insegurança, altas taxas de inflação e baixos salários dos servidores públicos levaram à emigração de milhares de médicos, enfermeiros, cientistas e educadores. Os acadêmicos venezuelanos Jaime Requena e Carlo Caputo, membros da Academia de Física, Matemática e Ciências Naturais da Venezuela, destacaram a situação cruel e mostraram que, entre 1960 e 2000, 235 pesquisadores de células-tronco deixaram o país, porém, entre 2000 e 2015, mais de 1.450 o fizeram, e os números continuam a subir.
Além disso, o grande número de políticos e ativistas oposicionistas no exterior formou grupos fortes de influência, que continuamente expõem a natureza repressora do regime de Maduro.
Impacto da COVID-19
A situação da COVID-19 em 2020 deu uma nova dimensão a esse fenômeno. Muitos venezuelanos que moram no exterior dependem do trabalho informal para obter seus rendimentos, setor que foi particularmente muito atingido pelos lockdowns nos diversos países. A maioria deles não tem acesso ao seguro social. Assim sendo, muitos venezuelanos voltaram para seu país: estima-se que cerca de 15.000 venezuelanos tenham regressado; é um pequeno percentual, mas ainda assim é um número significativo. O regime de Maduro aproveitou esse regresso para se beneficiar politicamente, utilizando-o como propaganda. Houve também relatos de discriminação e más condições sanitárias nos acampamentos de quarentena.
Além disso, os migrantes estão voltando para um país com um sistema de saúde falido, que ocupa a 176ª posição entre 195 países do mundo, de acordo com o Centro de Índice de Segurança de Saúde da Universidade John Hopkins, que também rastreia a disseminação do vírus. O Programa Mundial de Alimentos estima que mais de 40 por cento dos lares venezuelanos sofrem com cortes de água diários, e que o país corre o risco de ter uma forte crise de fome. No final de abril de 2020, o regime venezuelano só havia divulgado 329 casos de coronavírus e 10 mortes, embora os números fossem provavelmente muito mais altos. Sem acesso a medicamentos e onde até mesmo o ato de lavar as mãos é um desafio, a ameaça do vírus está sempre presente. A economia foi ainda mais afetada pela maior queda do preço do petróleo na história, além da redução do total de remessas de dinheiro. O regime sofrerá ainda mais nos próximos meses, e os migrantes se verão obrigados a deixar seu país novamente, seja à força ou devido às circunstâncias.
O regime venezuelano tem sido uma força tanto ativa quanto passiva na migração de seus cidadãos, tendo sido beneficiado e também prejudicado pelo fenômeno. No entanto, a situação causada pela COVID-19 não é apenas inédita, mas também enfraquecerá ainda mais as instituições públicas instáveis da Venezuela.
Paradoxalmente, qualquer futuro governo de transição também terá que contar com as remessas e com uma pressão reduzida sobre os serviços públicos. Muitos daqueles que fugiram do país, sem dúvida, retornarão, especialmente os que foram perseguidos. O governo de transição também precisará que trabalhadores essenciais retornem à Venezuela. Entretanto, ele também se beneficiará com o retorno progressivo da maioria dos demais migrantes para conseguir o tão necessário capital e não sobrecarregar o debilitado sistema de saúde que herdará. As consequências da migração forçada pelas políticas dos regimes de Chávez e Maduro continuarão a ser sentidas nas próximas décadas.