“A concentração de poder pelo Executivo permitiu que a Nicarágua se transformasse em um Estado policial de facto, onde o governo instalou um regime de supressão de todas as liberdades”, disse Fiorella Melzi, coordenadora do Mecanismo Especializado de Acompanhamento à Nicarágua (MESENI, em espanhol) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no dia 6 de dezembro de 2021.
Melzi fez essas declarações durante a reunião virtual “Nicarágua: retrato da prisão institucional nas Américas”, organizada pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional, Gabinete em Washington para Assuntos Latino-Americanos, Coletivo de Direitos Humanos Nicarágua Nunca Mais e Serviço Judaico Americano Mundial.
Segundo Melzi, o regime de Ortega-Murillo, realiza o controle e a vigilância dos cidadãos através de instituições de segurança estatais e paraestatais, com o aval dos demais poderes do Estado. “Não existe no país um sistema de pesos e contrapesos, visto que todas as instituições respondem às decisões do Executivo”, denunciou Melzi.
Repressão crescente
Durante os últimos três anos, a CIDH vem alertando a comunidade internacional sobre as graves violações aos direitos humanos na Nicarágua. “[As violações incluem] intimidações e repressão a qualquer pessoa considerada opositora ao governo, uso arbitrário da força letal e não letal, execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, incursões, ameaças, retaliações e maus tratos”, disse Melzi.
De acordo com a especialista, o regime de Ortega-Murillo também utiliza a criminalização mediante centenas de processos judiciais “sob acusações infundadas ou desproporcionais, como terrorismo ou crime organizado”.
Nos sete meses que antecederam as eleições gerais de novembro de 2021, o regime de Ortega-Murillo intensificou a repressão com prisões arbitrárias e a criminalização de mais de 30 pessoas sob acusações infundadas e sem as devidas garantias judiciais, explicou a advogada. Entre essas pessoas, estão sete candidatos à presidência, que permanecem privados de liberdade. Melzi também denunciou as intimidações aos líderes de movimentos sociais e estudantis, bem como o contínuo fechamento de espaços para a imprensa independente.
Concentração de poder
Segundo a CIDH, a concentração de poder na Nicarágua começou em 1999 com um pacto firmado entre a Frente Sandinista para a Libertação Nacional (FSLN), comandada por Ortega, e o Partido Liberal Constitucionalista (PLC), liderado pelo então presidente, Arnoldo Alemán. Através do denominado “Pacto Alemán-Ortega”, ambas as forças políticas negociaram uma série de acordos para garantir o controle do Poder Executivo e a subordinação dos demais poderes do Estado.
“[O pacto] instaurou um sistema bipartidário para facilitar a cooptação dos mais altos cargos da administração pública”, afirmou a CIDH no relatório “Nicarágua: Concentração de poder e enfraquecimento do Estado de Direito”, publicado no dia 25 de outubro de 2021. A concentração de poder pelo Executivo se intensificou em 2007, quando Ortega assumiu o segundo mandato e se consolidou com a repressão aos protestos sociais iniciados em abril de 2018.
Em outubro de 2021, o MESENI constatou que a repressão aos protestos resultou em pelo menos 328 vítimas fatais e 1.614 pessoas privadas de sua liberdade, além de 150 estudantes expulsos, mais de 405 profissionais de saúde demitidos e mais de 103.600 nicaraguenses exilados, segundo o relatório da instituição. “Essas ações se consolidaram com o aval de diferentes instituições estatais: a Assembleia Geral, o Poder Judicial (particularmente a Corte Suprema) e o Conselho Supremo Eleitoral”, disse Melzi em sua apresentação.
O acordo entre a FSLN e o PLC se consolidou graças a reformas constitucionais, eleitorais e legais que quebrantaram o princípio de separação de poderes, informou a CIDH. Em 2010, por exemplo, a Corte Suprema permitiu que Ortega se apresentasse como candidato à presidência nas eleições de 2011, apesar de existir uma proibição constitucional sobre a reeleição.
Em 2014, a maioria da governista FSLN da Assembleia Nacional da Nicarágua aprovou uma reforma constitucional que habilitou a reeleição presidencial indefinidamente. A reforma, aprovada por 64 votos a 25, também outorgou à presidência a faculdade de emitir decretos com força de lei, informou a BBC na ocasião.
“A Assembleia Geral da OEA [Organização dos Estados Americanos] propôs que seria essencial que se adotassem medidas com o objetivo de promover eleições livres e justas na Nicarágua”, disse Melzi. “Nenhuma das medidas propostas pela Assembleia Geral da OEA foi implementada”, concluiu.