Já não é fato inédito, tampouco recente, o reconhecimento que o Brasil possui no cenário internacional no que se refere às Operações de Paz das Nações Unidas. Os treze anos em que a força brasileira esteve presente no Haiti (2004-2017), tendo, inclusive, oficiais brasileiros à frente do comando do componente militar na desafiante função de Force Commander, definitivamente levaram o reconhecimento das nossas tropas a um patamar superior. O Brazilian Way of Peacekeeping, que é uma combinação da característica atribuída ao brasileiro na busca de seguir pelo caminho da negociação e a solução pacífica dos conflitos (dado constante na Constituição brasileira, inclusive), tanto na esfera política interna quanto externa, sobre o desenvolvimento sustentável (Kenkel 2011)e o nosso Soft Power, queé a habilidadede exercer poder através da influência, persuasão e capacidade de atração, tendo como bases fundamentais a cultura, valores políticos e política exterior (Nye 2011),são amplamente (re)conhecidos no meio das missões de paz da ONU e também são objetos de diversos artigos, nacionais e internacionais. Nas palavras de Nasser (2012), a forma solidária de servir dos peacekeepers brasileiros pode ser compreendida como uma demonstração de poder de influência, Soft Power, enquanto também sabe fazer uso do HardPower, que pode ser traduzido como um meio tipicamente militar em benefício da paz.Como publicado no site Defesa em Foco, as tropas brasileiras possuem “A capacidade de interação e adaptação inerentes ao povo brasileiro e amplamente demonstradas por nossos soldados, e associadas ao profissionalismo nas diversas situações de emprego angariaram a confiança do povo haitiano no trabalho desenvolvido pelo contingente brasileiro ao longo dos últimos anos. Em decorrência, percebe-se um considerável apoio da população local às operações de nossas tropas. Fruto dessa relação de respeito e admiração aliado a facilidade de integração do soldado brasileiro, hoje encontramos muitos haitianos que falam bem o português, inclusive crianças.”
Operações de Paz

No entanto, com o término das operações, bem sucedidas, em solo haitiano e, posteriormente, com a saída do Navio Capitânia da Marinha Brasileira do Líbano (UNIFIL), não contamos mais com a presença de nossas tropas desdobradas em operações de paz. O Brasil foi, então, “obrigado”, no melhor sentido do termo, a repensar formas de se manter presente nas questões relacionadas às Operações de Paz.
As missões individuais com a participação de militares brasileiros, apesar de já existirem há vários anos, ganharam mais proeminência e importância e o treinamento para elas foi e vem sendo aperfeiçoado cada vez mais por meio do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB). Como consequência da valiosa competência e significativa atuação dos nossos capacetes azuis, mais mulheres e homens brasileiros uniformizados vêm sendo desdobrados nas mais variadas missões. Destacamos, ainda, a seleção de oficiais generais brasileiros para posições de grande visibilidade e destaque, como Force Commanders e Chefes do Estado-Maior nas missões multidimensionais e robustas, além da seleção de outros oficiais para integrarem departamentos da ONU, em Nova Iorque, EUA, pelo regime de Secondment. Em outras palavras, mesmo sem um efetivo significativo de um contingente brasileiro desdobrado, o Brasil conseguiu se “recriar” e mostrar outras capacidades no exercício de outras funções nas missões de paz no âmbito das Nações Unidas.
Para isso, o Brasil avança ainda mais na contínua aquisição e consolidação de conhecimentos, com posterior treinamento seguido do desdobramento no terreno e o consequente reconhecimento externo. Exemplo disso foi o convite enviado pelo Departamento de Operações de Paz da ONU à Missão Permanente do Brasil em sua sede em Nova Iorque, solicitando especialistas em Proteção de Civis para integrarem o Grupo de Trabalho responsável pela atualização do Manual de Implementação de Proteção de Civis para o Componente Militar. É claro afirmar que outros países receberam tal convite da mesma forma. Porém, é igualmente importante relembrar que se o Brasil já não fosse portador do reconhecimento que tem na área de operações de paz, certamente não teria procurado para atender a solicitação feita. Isso é fruto do trabalho desenvolvido ao longo dos anos, com as dificuldades naturais do processo, inclusive com o treinamento ininterrupto de peacekeepers em meio à pandemia da COVID-19. Por isso, devemos sim reconhecer nosso valor como fonte criadora de recursos humanos de alta qualidade, com a capacidade de preparar capacetes azuis para atuar em diversas frentes existentes no universo das operações de paz, tal como a condução de treinamento em Proteção de Civis para componentes militares e envio de pessoal para o exterior a fim de compor grupos de trabalho com a missão de revisar e atualizar conteúdos para melhor treinar peacekeepers no que tange à proteção de populações vulneráveis, objeto desse artigo.
O Grupo de Trabalho (GT), formado por iniciativa do Escritório de Assuntos Militares do Departamento de Operações das Nações Unidas (UN Office of Military Affairs of the Department of Peace Operations/ UN OMA DPO), contou com a participação de um grupo de especialistas em Proteção de Civis (PoC), indicados pelos Estados-Membros da ONU, tendo representantes do Brasil entre eles. Todos com experiência em Operações de Paz e, sua maioria integrando o nível estratégico em suas organizações. Além de militares, o GT também era composto por integrantes civis que ocupam funções do nível estratégico dentro da ONU. Apesar das Diretrizes de Implementação de PoC serem voltadas ao treinamento do braço militar das operações de paz, a expertise desses civis no tema auxilia sobremaneira a condução do processo de revisão e atualização de conteúdos, que é extenso, minucioso e demanda considerável tempo dos especialistas, sejam eles militares ou civis.
Cidade da Guatemala
Como forma de entrada na fase final do trabalho de revisão e atualização das Diretrizes, foi realizado um encontro presencial com os integrantes do GT, na cidade da Guatemala, entre os dias 16 e 20 de maio deste ano. Por razões geográficas, de agenda e/ou financeiras, a maioria dos integrantes não pôde comparecer ao evento na capital guatemalteca. Dos dezessete integrantes, dez estiveram presentes, sendo dois brasileiros, para dar início à fase final do projeto, que já vinha sendo desenvolvido, através de videoconferências regulares, há cinco meses.
A semana presencial foi marcada por debates de altíssimo nível sobre PoC, quando os presentes puderam expor seus pontos de vista acerca das novas linhas de pensamento que deveriam nortear as Diretrizes, discutindo as nuances e os motivos das mudanças conceituais de vocábulos, considerando profundamente o que seria mais “palatável” ao que as tendências políticas do alto escalão das Nações Unidas ditam atualmente. Como citado anteriormente, o debate conteudista sobre PoC se deu prioritariamente no nível estratégico, por vezes travando contato no político também. O nível estratégico é o universo de onde são emanadas as ordens que fluem em direção ao operacional, onde são “traduzidas” para a execução e aplicação no nível tático. Esse fluxo direcional das ordens tem uma razão de ser e, sem qualquer dúvida, deve ser respeitado. É assim que as grandes instituições se baseiam e se organizam para atingir seus objetivos. Acontece da mesma forma nas Forças Armadas. No entanto, como integrante do GT e oriunda do nível tático, onde lido diretamente com o treinamento de peacekeepers no CCOPAB, creio que houve um pensamento altamente voltado e centrado no nível estratégico e, não raras as vezes, no político. E reitero a importância de ambos. Todavia, foi notória a existência de uma lacuna gigantesca entre o que é idealizado no nível estratégico e o que é para ser aplicado pelo capacete azul, por diversas vezes esquecido e que está na ponta da linha de todo aquele fluxo de ordens. E entre o fluxo de ordens, diretrizes e manuais emitidos pelo escalão estratégico da ONU e o(a) peacekeeper no terreno (nível tático), está o treinamento conduzido pelos centros de preparo para operações de paz, que podemos dizer que são as antessalas do nível tático, e cuja relevância foi colocada pela representação brasileira na mesa de debates, de forma frequente, na tentativa de sensibilizar os demais, centrados no nível estratégico, sobre a necessidade de voltar o olhar mais para o aluno em treinamento para ser um(a) peacekeeper.
Boots on the ground

Em outras palavras, na visão brasileira dentro do GT, o fluxo de ordens deve se manter, naturalmente, de cima para baixo (top-bottom), do escalão superior ao inferior. Contudo, para aprodução de manuais e diretrizes, seria mais interessante que fosse mais de baixo para cima (bottom-up), informações, sugestões, recomendações vindas do escalão inferior para alimentar as decisões e diretrizes do superior. Indo um pouco além, o olhar no momento de revisar e atualizar conteúdos deve se voltar à realidade do terreno, das necessidades de conhecimento do peacekeeper no nível tático, das demandas do tipo de treinamento que ele ou ela deve receber antes do desdobramento, do vocábulo acessível e o mais objetivo e simples possível (não simplório), lembrando que há efetivos militares de todo mundo sendo treinados nesse momento, e que têm um objetivo em comum: atuar de forma minimamente satisfatória numa operação de paz. Portanto, o treinamento devido deve ser o objeto de atenção. E a melhor fonte de recursos de informações sobre tais necessidades são os centros de treinamento de operações de paz espalhados pelo mundo, pois são os que capacitam, orientam e têm a atenção inteiramente voltada ao terreno, local de onde vem a realidade vivida pelos capacetes azuis, de onde as informações e atualização de cenários chegam mais rapidamente e com menos filtros que os relatórios frios enviados aos altos escalões da ONU em Nova Iorque. Ou seja, a atividade de revisão e atualização de conteúdos deveria ser mais boots on the ground, mais voltada às necessidades e desafios do terreno, mais especificamente à Proteção de Civis, tema de reconhecida relevância por questões históricas vividas pela ONU. Para atingir este fim, os Grupos de Trabalho, que têm a nobre missão de atualizar as informações dos manuais e diretrizes para o melhor desempenho dos peacekeepers no terreno através do treinamento pré- desdobramento e naqueles conduzidos durante as missões, deveriam contar entre seus integrantes um número maior de profissionais representantes do nível tático, que lidam diretamente com treinamentos de capacetes azuis, sem jamais excluir os do nível estratégico, logicamente. A ideia é fomentar a integração entre os níveis, com a troca direta de conhecimentos e experiências em benefício do público-alvo do trabalho de revisão e atualização das diretrizes: o futuro peacekeeper, no caso do presente artigo, os capacetes azuis do componente militar. E, ouso ir além, em prol da população vulnerável que diariamente vive os terríveis impactos dos conflitos armados. Um peacekeeper bem treinado em PoC é sinônimo de uma população melhor protegida, grande beneficiária de recursos mais aprimorados para sua proteção.
Uma maior coesão do que se quer do peacekeeper (nível estratégico) deve ser estimulada e para isso, ela deve ser clara, direta e objetiva, com o mínimo ou, idealmente, sem a menor margem para ruídos na comunicação e dúvidas de interpretação das ordens. Tal como componentes militares do mundo todo devem trabalhar. Para quem lida com treinamento para operações de paz, é de fundamental importância uma coesão entre o que se espera do peacekeeper e a transmissão de conhecimento. Durante esta rica semana de debates e troca de conhecimentos na Guatemala, pudemos perceber que as mudanças desejadas no nível estratégico levam um tempo considerável até que a informação seja disseminada satisfatoriamente no nível dos centros de treinamento para operações de paz. Termos tais como female/male peacekeepers já não devem mais ser usados, de acordo com a representante do escritório de Proteção de Civis do DPO. Devendo ser substituídos por women/menpeacekeepers, por motivos que se baseiam na Ética, e cuja explicação, porém, não teve um maior aprofundamento. Da mesma forma, a utilização de imminent threat para caracterizar uma ameaça prestes a ocorrer, deve ser combatida e, em seu lugar, devemos utilizar credible ou clear threat a fim de evitarmos a subjetividade da palavra imminent. O que foi algo que chamou a atenção e gerou debates, principalmente de quem lida diuturnamente com treinamento de pessoal militar, uma vez que ambos novos termos também possuem uma natureza um tanto quanto subjetiva. Ademais, foi também lembrado que o principal material das Nações Unidas para desdobramento de pessoal, o Core Pre-Deployment Training Materials (CPTM), ou Conteúdo Principal para Treinamento Pré Desdobramento, é de caráter obrigatório para o desdobramento de peacekeepers e utiliza os termos citados acima e que, após esse encontro presencial, descobri que devemos abolir. A sua última edição ocorreu há cinco anos e não possui uma data para revisão e atualização de seu conteúdo, sendo ele o material principal de treinamento de capacetes azuis. A questão que ficou pairando no ar, na perspectiva brasileira, é em relação aos outros centros de treinamento. Quando eles tomarão ciência dos novos termos, os motivos de mudança para adaptarem seus meios de treinamento? Quantos centros de treinamento repassam aos seus instruendos que o Women Protection Adviser (WPA) é o ator de proteção responsável por lidar com casos de violência sexual relacionado ao conflito também sofridos por homens e não apenas mulheres? E que ainda não houve uma atualização de um termo mais abrangente para proteger as vítimas, sejam mulheres ou homens?
Desta forma, foi de fácil percepção que nem sempre utilizamos a mesma linguagem e conhecimento quando se trata das operações de paz, o que pode dificultar o treinamento e confundir o capacete azul desdobrado que trabalha com outros peacekeepers de nacionalidades diversas e com um treinamento que, idealmente, deve ser o mais padronizado possível. Por isso, seria interessante uma maior aproximação do nível estratégico com os centros de treinamento, a fim de juntos construírem manuais mais coesos e objetivos, o que atenderia a demanda de conhecimento sólido do peacekeeper. Um processo que ora pode orbitar e ser top-bottom e que ora também pode ser bottom-top, num produtivo intercâmbio de conhecimentos.
Canal direto
Talvez a criação de um núcleo ou seção dentro do Serviço de Treinamento Integrado do DPO (UN ITS DPO) com canal direto com os centros de treinamento para operações de paz seria uma iniciativa que enriqueceria sobremaneira a comunicação sobre o que se quer objetiva e claramente dos peacekeepers, diminuindo esse gapexistente entre os níveis estratégico e tático. Principalmente nos dias atuais, em que a corrente de pensamento da ONU está direcionada à Comunicação Estratégica. E um dos requisitos para uma comunicação estratégica efetiva é saber a quem se quer atingir e como atingir. Dito isto, os centros de treinamento para operações de paz são e devem ser ferramentas fundamentais para difusão deste conhecimento.
Sendo assim, na perspectiva de quem atua no treinamento de pessoal para o nível tático das operações de paz da ONU há alguns anos e que tem por missão traduzir e transmitir as diretrizes de atuação da Organização para o componente militar, existem boas chances de se minimizar equívocos que podem impactar negativamente a missão, a imagem e a credibilidade das Nações Unidas se houver uma interação mais direta entre aqueles que criam as diretrizes e manuais e aqueles que transmitem o conhecimento desses documentos. Principalmente no tocante à Proteção de Civis, tema muito atual, objeto da atual revisão e atualização de diretrizes e meu objeto particular de estudo. Daí, a necessidade de haver uma integração mais direta entre o nível estratégico da organização e os centros de treinamento de operações de paz, que são aqueles que lidam diária e diretamente com os futuros capacetes azuis, que recebem suas demandas de conhecimento, funcionando como as verdadeiras antessalas do terreno das missões de paz.
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